"A aposta na formação"
imagem: Sporting.pt |
O Tiago é um dos amigos Sportinguistas com quem mais gosto de falar sobre o nosso clube. É alguém que constrói os seus textos com muita lucidez e racionalidade (que eu por vezes gostava de ter). Fez um texto sobre a aposta na formação, que já tive o prazer de ler e que gostaria de partilhar. Discutir Sporting com esta clarividência dá-me muito prazer.
"Começou na campanha eleitoral, prosseguiu pelo final da época e agora, em pleno defeso, volta a ganhar força em plena vaga de ampliaçoes de contratos e vitórias em amigáveis: a aposta na formação. A narrativa pode resumir-se facilmente: o clube gastou rios de dinheiro em jogadores teoricamente bons que afinal são realmente maus e negligenciou, nestes últimos dois anos, o principal activo do clube e que mais reconhecimento e êxito, tanto desportivo como financeiro (pelo retorno potencial que representa em vendas futuras e pela poupança que implica): o futebol formativo. Como tal, há que voltar a centrar a política desportiva do clube aqui e construir uma primeira equipa à volta dos jogadores formados no clube e essa deve ser a prioridade a curto prazo.
O contexto favorece que, no culminar de uma sequência de desnorte e de desgostos, surjam entre sportinguistas alguns argumentos que parecem cantis de racionalidade no meio do deserto emocional, tal é a força com que nos agarramos e bebemos deles. O problema é que alguns deles parecem precisamente uma miragem provocada pela sede de qualidade e resultados. O chavao da “aposta na formação” é um dos que se apoderou do discurso de muitos sócios e adeptos desde que as ideias trazidas pela última direcção do clube e do futebol não só começavam a falhar como a dar resultados bem piores do que as piores expectativas.
O recurso a este argumento parece até uma demonstração de bom senso e “bom sportinguismo” (outra narrativa interessante, esta do Sporting como categoria moral corrompida por alguns) irrefutável. Parece, digo, porque não é. Serve este comentário para avançar ideias com o objectivo de reflectir sobre uma ideia algo mitificada. Conto que seja útil, já que todo o tempo dedicado a repetir ou destacar argumentos vazios é tempo que seria utilmente empregado a coisas mais consistentes.
Formação em si, porque sim
No final de 2012, um dos vários turbilhoes de Mourinho em Madrid envolveu a perspectiva sobre a formação do clube, o papel do Real Madrid Castilla e as diferenças com Alberto Toril, o seu treinador. Num futebol altamente polarizado como é o da Liga Espanhol e sendo o rival do Madrid sobejamente elogiado pelo seu futebol formativo, ninguém estranhou que o treinador Tito Vilanova fosse rapidamente instado a opinar sobre o caso. E numa conferência de imprensa em vésperas de um jogo contra o Celta, aconteceu algo que de fora pode ter parecido excepcional: Tito deu indirectamente razao a Mourinho (ou ao argumento que se lhe quis publicamente imputar, se preferirmos). Ainda na sombra do sonho dos 11 jogadores da formação a triunfar na equipa principal, Tito disse as palavras mágicas “isso da formação é bonito de dizer mas se não ganhássemos, não serviria para nada; pomo-los a jogar porque acreditamos que é com eles que podemos ganhar, senão não o faríamos”.
Este argumento é chave e, centrando-nos puramente nele e não nos contextos e realidades respectivas, é altamente diferencial daquele que continuamente se utiliza no Sporting. Há a cultura de vitória e de excelência e depois a vocação formativa, e a segunda serve a primeira. A história das últimas décadas do Sporting mostra que o discurso da aposta na formação se fez em momentos de menor capacidade financeira e parece mostrar, por outro lado, que nos momentos de êxito (infelizmente demasiados esporádicos), tanto a estrutura do clube como os adeptos estavam mais concentrados nos resultados e na qualidade do jogo do que propriamente em saber se esses resultados e essa qualidade se devia a uma “aposta” na formação. Outra coisa que se depreende facilmente é que os grandes valores a emergirem da formação, e por emergir refiro-me a destacar-se claramente como dos melhores jogadores do campeonato e/ou a dar o salto para paragens mais competitivas, fizeram-no justamente em momentos de grande competitividade, em plantéis com uma base experiente ou em contextos de títulos. Penso em nomes como Figo, Quaresma ou Cristiano Ronaldo, até Simao.
No presente, é comum ver a justificação da aposta em jogadores formados no clube e com menos de 2 ou 3 anos de sénior numa pretensa melhor relação custo/qualidade dos jogadores contratados nas últimas épocas. Esta relação custo/qualidade é baseada nos resultados da equipa: a posição no campeonato, as vitórias e derrotas, os golos marcados e sofridos. O exercício é simples e simplista: gastou-se dinheiro em jogadores com ordenados mais altos que os dos jogadores da formação e não só se falharam todos os objectivos como se ficou na pior classificação de sempre, e com o correspondente rombo orçamental. Como o potencial não é mesurável de forma fiável e a vocação formadora induz sempre ao entusiasmo em relação aos primeiros sinais de qualidade, é fácil pensar que o jogador da formação tem uma melhor relação custo/qualidade que o da ida ao mercado.
É neste ponto que convém recordar as palavras do Tito Vilanova e tentar perceber se a lógica é “se é para perder, melhor perder com os nossos que são mais baratos” ou se a lógica é “visto tudo o que podemos fazer para melhorar a equipa, chegámos à conclusao que os melhores, os jogadores excepcionais, estao cá dentro”. E convém perceber com que jogadores é que o Sporting ganhou os últimos títulos e contra que jogadores rivais o Sporting tem (porque tem!) que lutar para ganhar os que lhe esperam. Atribuir mais importância a um jogador, privilegiá-lo e dar-lhe prioridade por ser formado na casa, magnificar o seu clubismo, é desrespeitar o seu potencial real e o seu talento. Numa equipa ganhadora e com talento, o clubismo torna-se irrelevante face à qualidade e capacidade competitiva e quando um jogador tem que ser realçado por ter sido formado no clube ou por sentimentalismos, subjaz ao seu tratamento um descrença na sua real capacidade. Esta descrença fica exposta quando, por motivos extra desportivos, os jogadores são afastados da equipa, como foi o caso de Pedro Mendes após assinar com o Parma ou como se insinua que pode ser o caso de Ilori ou Nuno Reis: com os poucos dados que temos para avaliar, o que está claro é que a crença na qualidade e no talento não se sobrepuseram a factores negociais ou contratuais.
O que é apostar?
A resposta parece fácil mas não é. Parece fácil porque nos habituaram a pensar que apostar significa dar minutos de primeira equipa. Mas em realidade é confuso, caso contrário esse, o de ter minutos na primeira equipa, não seria o argumento para explicar o complicado impasse da renovação de Bruma. Certo, o problema talvez não seja os minutos na primeira equipa mas o facto de não se ter renovado antes com Bruma. Porém, Bruma tem contrato, foi renovado em 2011 e, no momento em que foi lançado na primeira equipa, faltava época e meia para este terminar. Além que na altura em que foi lançado, foram decisivos o incentivo à “aposta na formação” (isto de dar jogos a titular) e a confiança que ao fazê-lo, Bruma se sentiria mais motivado a renovar. Enfim, o argumento parecia claro mas complica-se.
No Sporting actual é ainda mais confuso perceber exactamente o que significa apesar de, mediaticamente a ideia ser apresentada e usada como se fosse cristalina. Por um lado reafirma-se a intenção de aumentar os minutos e a titularidade de atletas formados no clube, por outro reduz-se significativamente os quadros de treino e prospecção do futebol formativo. Por um lado amplia-se contratos (já de si longos) com vários jogadores, por outro anuncia-se um orçamento radicalmente reduzido, defendendo uma poupança justamente baseada no baixo custo dos jogadores da formação. O talento e a formação deste custam dinheiro. Uma academia, uma infraestructura física e humana que permita potenciar o talento de atletas desde so primeiros escaloes até aos seniores, custa muito dinheiro. Até optimizar os recursos para poupar dinheiro, custa dinheiro. Se apostar na formação significa poupar dinheiro e se prolongar os vínculos dos jogadores da formação significa ampliar o prazo dessa poupança, o clube arrisca-se ou a colher tempestades em caso de êxito a médio prazo (pelo possível desfasamento entre o valor que o Sporting atribuiu aos jogadores e o valor que o mercado lhes atribui em função desse mesmo êxito) ou o prolongar de uma baixa competitividade, fruto da degradação das condiçoes para um bom trabalho no futebol formativo.
Está visto que é complicado de perceber o que significa a expressao mas aparentemente permite a um jogador de 23 anos com uma época positiva mas não extraordinária na Académica, a renovar o seu contrato até aos 27 anos e a obter a confiança que será a aposta que nunca antes chegou a ser, nem ao ponto sequer de ter lugar no plantel principal. Complicado de perceber se quisermos ir além do que nos habituámos a pensar, voltando ao princípio.
Voltar a apostar na formação. “Voltar”?
Se considerarmos que apostar é entao alinhar com jogadores da formação na equipa principal, a este discurso subjaz também a ideia que se trata de recuperar uma rota temporariamente abandonada à qual há que voltar. Mas será realmente assim? Descontemos o facto da vocação formativa ter estado presente tanto nos discursos como nos actos e programas de todos os responsáveis que passaram pelo clube (e em boa parte dos casos com um funcionamento prático felizmente autónomo de instabilidades institucionais), e centremo-nos nalguns dados.
O último período de aposta na formação foi talvez o período de Paulo Bento. Treinador de invulgar longevidade no clube, hoje em dia é visto como o último grande defensor da formação desde o banco, um testemunho até há pouco tempo aparentemente passado a Jesualdo. Até 2009, o Sporting teve às maos de Paulo Bento na primeira equipa uma fornada de jogadores formados no clube. E depois? E depois... também. Na época 2008/09, entre os jogadores que tiveram minutos no campeonato contavam-se 10 formados no clube. É verdade que entre eles havia jogadores amplamente utilizados como Rui Patrício ou Moutinho mas falamos também do veterano Tiago, dos intermitentes Djaló e Adrien e também dos 4 singelos minutos de Renato Neto. Já na época 2011-2012, dos 10 jogadores formados no clube com minutos no campeonato passávamos a uma preocupante descida para... 9. O conjunto total de minutos entre os jogadores da formação diminuía mas um deles era totalista.
Na época de 2012-2013, o total é de 15 jogadores mas 1 nao chegou a ser utilizado, 2 deles saíram no mercado de Janeiro e 6 desses 15 não chegam sequer aos 90 minutos. Ou seja, algures entre os 9 e os 10 nestas três épocas analisadas. É certo que entre os titulares ou jogadores mais utilizados passámos de 4 ou 5 formados no clube para 2 ou 3 com a mesma origem. É suficiente para apontar esta variação como boa parte da origem dos problemas ou justifica radicalizar este pretenso regresso à formação como panaceia para o futebol sénior do clube? Isto partindo do princípio que apostar na formação é, claro, fazer alinhar o máximo de jogadores possíveis na equipa principal, o máximo de tempo. Por outro lado, se os resultados dos últimos anos permitem inferir que algo não está a ser feito da melhor maneira (formulemos a coisa desta forma eufemística) e se ao longo desses mesmos últimos anos não houve uma variação tao significativa no número de atletas da formação que chegaram ao plantel principal, justifica basear, primeiro, um paradigma de gestao desportiva nessa ideia e, segundo, definir essa ideia em função desse volume de tempo de jogo? Dito de outra maneira, se nem antes quando esse caminho da formação era seguido, o Sporting tinha o êxito que não se obteve por se ter abandonado esse mesmo caminho, pretende-se voltar exactamente a quê?
Esta noção de regresso expoe um clube num limbo. Não é novo que há vários anos que cada época é o ano zero de um novo projecto. Até a época passada, que ameaçava ser uma excepção, acabou por ser considerada o recomeço do projecto do ano anterior. A aposta na formação, há exactamente um ano, eram Sá Pinto, símbolo do clube e escalador meteórico no prestígio do clube pela boa percepção do trabalho nos juniores e na segunda metade da época, ainda que agridoce. Eram a renovação de Patrício, Adrien e André Martins, curiosamente hoje (ainda) titulares no onze de Leonardo Jardim. E, de novo, o limbo, entre o regresso a umas origens – a “aposta” pretensamente abandonada, o sportinguismo puro (a tal questao da categoria moral), pré-corrupção roquetista – e o futuro, o potencial dos jovens, os contratos até 2018, a nova era de clube diferente que agora começa e que nos trará a todos muitas alegrias. A alguns já nos bastava que conseguisse fazer-nos disfrutar do presente e sacudir o cinismo diante dos desgostos, ao menos os da pré-época, esta que começou em Março, quando acabou mentalmente a temporada 2012-2013. Quando a bola voltar a rolar a sério, não tudo mas algo importante, o foco da nossa atenção, será diferente."
Comentários
A aposta na formação sempre existiu e não é a renovação de contratos de jogadores jovens que torna isso uma realidade (basta ver as contratações de Welder na sequência da "doação" Arias, Maurício, quando há Illori, Dier, Nuno Reis, Fokobo, Tobias Figueiredo e Semedo, para além de Rojo, ou Magrão quando há Zezinho, João Mário, Ricardo Esgaio, Cissé quando se dispensa Etock e se tem Rubio e Betinho).
Não discuto o valor dos jogadores contratados (ainda não os vi jogar o suficiente), mas apenas a sua contratação quando a "aposta na formação" é uma das "bandeiras".
As contratações, que deviam ser poucas nesse caso, em algumas situações parecem despropositadas.
Uma coisa é renovar contratos (o que, em princípio, pode ser uma boa medida), outra bem diferente, é apostar nos jogadores da formação e dar-lhes condições para conseguirem jogar e evoluir.